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JOÃO BOTELHO e JOSÉ SARAMAGO: um compromisso com a Cidadania. A propósito do ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

 




"Longe das boas intenções que enchem o inferno,

 precisamos de cuidado e atenção para o que somos, de onde vimos e para onde vamos"

                     Guilherme d' Oliveira Martins

 

              João Botelho, na senda do que tem vindo a realizar, recorre uma vez mais ao que está escrito em português para trazer para a tela, sendo agora o livro de José Saramago, o Ano da Morte de Ricardo Reis. Um trabalho necessário e oportuno, que merece um ver e um ler atentos. Não para um exercício de comparação, em demanda da fidelidade à obra literária, que constitui uma falácia, aqui e noutras adaptações deste e de outros realizadores. A adaptação literária para o cinema é uma mudança de linguagem, um itinerário novo desenhado pelo realizador, também ele intérprete enquanto leitor. Literatura e cinema, ainda que sejam sistemas com inúmeros pontos de contacto, são duas formas de narrativa, que evidenciando naturezas distintas e incomparáveis, constituem obras que valem por si.

              Não trata este breve texto da análise deste filme de Botelho, cujo trabalho acompanho e prezo, ainda que o considere como obra cinematográfica, meritória, pela competente direção de atores, pela riqueza psicológica de algumas personagens, pelo recurso à pelicula a preto e branco com que veste o ano de 1936, que de algum modo o torna também 'personagem'. O que aqui se traz é a luta contra o esquecimento, denominador comum ao cineasta e ao escritor, o avivar da memória, sem a qual não há construção de cidadania. O Ano da Morte de Ricardo Reis transporta-nos para o escuro ano de 1936: o nazismo na Alemanha; o fascismo na Itália; as eleições em Espanha e o golpe militar que se lhe seguiu; o massacre de Badajoz e a guerra civil; os primórdios do fascismo de Salazar e com ele o emergir da Legião Portuguesa e a criação da Mocidade Portuguesa, na esteira da juventude hitleriana; o terreno onde se semeou a deflagração da II Grande Guerra. Mais: a atmosfera cinzenta, porque conservadora e repressiva que então se vivia, a pobreza mantida do povo, sempre cerceadora da liberdade e reforço de conformismos, o bodo da páscoa, ajuda malvada a servir os desígnios opressivos do regime totalitário. E ainda a vigilância de uns sobre os outros, aguçada para a denúncia, que alimentou a robusta durabilidade do regime. Porque aconteceu tudo isto? O que é que, nas suas variantes e subtilezas, pode com camuflagem, vir a acontecer?

              A consciência é sempre consciência de alguma coisa, cada ato intelectual e coletivo, é um caminho traçado entre uma ignorância e um saber. E precisamos saber para fazer as fundas interrogações que orientem o nosso agir, para despertar a cidadania ativa, que não se desapega da reflexão sobre o que nos cerca e para onde queremos ir. Precisamos de transmissão da memória, do saber e da reflexão que ela alberga, das suas referências coletivas na nossa trajetória e destino comum. Estaremos a fazê-lo o suficiente e adequadamente? No mundo de hoje onde grassam os populismos e a democracia se fragiliza, é necessário que não fiquemos distraídos, é pertinente ver Botelho e ler Saramago, e/ ou outros, no contributo para alimentar uma cultura de liberdade e de paz.

             

                                                                            Maria Alcina do Carmo Dias

                                                                                  Professora de Filosofia


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